terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

É possível ver a morte duas vezes

Ali estava eu, andando em uma calçada suja e esperando que algum assaltante drogado me desse um tiro e procurasse dinheiro pelo meu corpo, ou para que um carro conduzido por um jovem bêbado passasse por cima de mim até que eu visse meus órgãos e parasse de respirar. Mas nada disso aconteceu, então simplesmente procurei outro bar para passar a noite. É estranho como nessas cidades enormes, que você espera achar todo o tipo de gente todo o tempo, ficam simplesmente desertas durante a madrugada. Continuei andando enquanto de vez em quando um carro passava devagar e iluminava melhor o meu caminho, chutando garrafas, lixo e pedaços de corpos pelo chão, deixados por alguém qualquer.
O primeiro sinal de movimento que avistei pela rua, pra minha sorte, era um bar. Eu me sentia péssima por estar andando a procurar álcool no meio da noite, mas beber sempre foi solução para os meus problemas, minha fuga, meu desvio para parar de pensar em minha própria vida. Então parei de chorar, levantei a bunda do sofá e saí.
Tinham umas pessoas fumando na porta, deduzi que lá dentro não era lugar para fumantes. O tempo estava tão quente que eu me sentia no inferno – não digo só pelo calor. Mas na verdade, eu nem me importava agora com uma sauna de nicotina no inferno, afinal, eu estava ali mesmo para tomar um drink com o Diabo. Entrei.
Entrei e me sentei no canto, lugar mais vazio e perto do banheiro, no caso de meu estômago não suportar muitas doses de bebida barata e eu tiver que botar tudo pra fora. Um garçom de cabeça raspada vestindo um avental sujo olhou para mim, deu para perceber o quanto ele não estava bem disposto a mandar de pobres a executivos para suas casas quando eles exagerassem e gastassem a grana toda num bar ruim e sujo, cheio de pessoas que você realmente quer evitar ao longo do dia. Eu gostaria de ter dito isso com mais ênfase, antes que o cara de terno se sentasse para beber na minha frente para me dizer sua profissão... ou algo próximo disso. Nos cumprimentamos, mas vou pular para a parte que realmente deve importar.
– Sou a Morte.
– Você é um homem de terno bêbado, não se valorize demais.
– Não, Megan, sou a Morte.
– Prove-me.
– Bom, veja aquele homem de verde do outro lado do balcão – e apontou um homem de uns quarenta anos com barba, e um suéter, sorrindo – Bem, aquele é John e ele é um psicopata, e quando aquele careca for lhe pedir a conta, aquele homem de amarelo ali – apontou para outro cara – vai chegar e causar uma briga por uma cerveja derramada. John vai pegar a sua arma, e hoje algumas pessoas vão morrer. E isso só vai acontecer porque eu estou aqui.
O homem de terno conseguiu me surpreender. Quando realmente percebi que sim, ele estava sóbrio, comecei a pensar sobre o quão louco ele devia ser.
– Então como pessoas morrem no mundo inteiro o tempo todo se você é um?
– O que você acharia do mundo se ele fosse cheio de pessoas?
– Ele já é cheio de pessoas. E é horrível.
– Bom, tudo que é vivo precisa morrer, então alguém tem que fazer o serviço, não é tão fácil assim, são bilhões de seres...
– Isso te faz um homem ocupado, então.
Nunca fiquei mais de cinco minutos em um bar sem beber. Seria meio bizarro pensar nisso quando eu acabo de ter a conversa mais estranha da minha vida, mas me levantei e pedi o uísque mais caro ao cara do balcão. Claro, se haveria morte, eu teria que me certificar que, ao menos no fim, tomaria um uísque bom que valesse cada centavo. Então bebi. E voltei para o homem que dizia ser a Morte. Pensei em algo inteligente para falar, mas não saiu do jeito que esperava, exatamente.
– Então assista isso.
Ele se virou para o meu lado, joguei um sorriso desafiador e andei em direção ao homem de suéter verde. Dois minutos de conversa, e ele já me seguiu para tomar um drink ao meu lado, e ao lado do meu recente acompanhante ceifador de vidas.
– John, esse é meu amigo... Lucas. – claro, eu teria que inventar algum nome imbecil para ele antes.
– Ah, e aí, como vai?
John parecia ser um sujeito legal. Ele estendeu a mão, ambos sorriram e agiram como dois seres humanos. E foi aí que eu joguei a minha conversa.
– John, você acredita que algo possa mudar o futuro?
– Bom, talvez, as coisas são relativas... – filosofias de bar. Você não tem que ouvir, certo? Ponto número dois.
Como agora eu já tinha certeza sobre ter controle da situação, minhas próximas bebidas foram longos copos de cerveja. Eu usualmente começaria assim para depois passar pro uísque, mas hoje as circunstâncias foram um pouco diferentes.
Pouco álcool depois, já estando num estado entre a sobriedade e embriaguez, vi o homem de amarelo que causaria a briga indo pagar a bebida no balcão. Ele saiu do bar, e não houve briga, nem tiros, nem nada. Me senti o máximo por ter driblado a Morte. Ou ao menos ter pensado isso...
John me disse que teria que ir embora, porque a sua maldita esposa não iria economizar gritos sobre chegar tão tarde em casa, e principalmente, por ter ido ficar ferrado em um bar. Eu disse que estava tudo bem, que a gente se via depois, mesmo sabendo que eu provavelmente nunca veria o seu rosto de novo. Ele sorriu e se levantou, direcionando-se ao balcão. Comecei a conversar sério com “Lucas”, de novo.
– Então... Morte, o que você achou disso, huh? Se as pessoas souberem o futuro, elas podem simplesmente ter a capacidade de “trair” isso, certo?
– Vire-se. Vire-se e olhe pro balcão.
Quando me virei, John estava direcionado ao barman discutindo sobre alguma merda qualquer. Pensei, “porra, é isso, então?” e fiquei tentando entender o que realmente estava acontecendo. John deu um soco na tampa do balcão, e o seu alvo deu um passo para trás. Um cara qualquer entrou na frente do meu campo de visão de tentou impedir a briga, inutilmente. Só vi John secando o suor que escorria por sua testa na manga de uma blusa, e a outra mão nas costas. E vi um revólver. E ouvi gritos, e o barulho de um corpo caindo semimorto no chão (eu já conhecia esse som). Um tiro em direção ao homem que tentou impedir e acabou entrando na briga. O engraçado é que isso significou um tiro em direção a mim.
Nunca tinha levado um tiro antes.
Senti minha cabeça pesada; é a consciência. E leve; é a minha vida indo embora, devagar. Percebi Lucas – a esse ponto já me acostumei com o nome – olhando para mim sério, enquanto eu devia ter uma cara de pavor, só de pensar em ter levado uma bala no estômago. Só senti o impacto no momento. E depois de perceber tudo, me veio a dor. Mas eu não queria pensar nisso agora. Aí senti outro impacto quando caí de ombro no chão.
Morte deu somente dois passos para chegar perto de mim, se abaixar e me dizer algo.
– Então, agora você vê, quando eu digo que pessoas têm que morrer, elas têm que morrer. E você achou que deveriam ter algo em especial, algo único em si? Pessoas são só pessoas. Você poderia morrer, tanto quanto o cara de amarelo poderia morrer, ou qualquer pessoa aqui. Você pode até tentar mudar quem termina ou quem continua, mas não pode dizer números; e é isso que eu faço: estatísticas.
Não consegui soltar nada além de “urf”. Eu estava morta. E arrependida. Por ter tentado mudar como as coisas são e por ter me achado superior por pensar ter concluído isso direito. E a Morte me olhou nos olhos mais uma vez.
– Levanta.
Eu imaginei, “pronto, morri. Agora serei levada para algum tipo de purgatório estranho por um homem de terno.” Eu estava pensando somente isso. Me levantei e não senti mais muita dor, só estava angustiada e com vontade de chorar. Mas não conseguia. Olhei ao redor, e todas as pessoas estavam aterrorizadas, algumas em torno do barman, e outras... Olhando para mim. Como imaginei, não vi mais John. Achei que fosse ser como num filme, um fantasma se levanta de um corpo morto e assusta as pessoas. Mas não havia um corpo. Havia somente a minha existência, real ou surreal, ali. A Morte voltou a falar comigo.
– Bem, Megan, acabou, pode se levantar e ir para sua casa.
– O quê?!
– Eu disse, pode se levantar e...
– Eu sei o que você disse! Mas... mas que porra é essa que me aconteceu agora?
– Você morreu. Mas não é sua culpa se você se acha inteligente demais pra mudar as coisas, em vez de deixá-las como simplesmente são. Então, depois de morrer, você está viva. E relaxa. Ninguém viu que você levou um tiro e nem vão pensar que você é algum tipo de zumbi.
Não pensei em nada legal para dizer nesse momento. Quero dizer, milhões de coisas me passaram em mente, e eu queria dizer uma porrada de xingamentos para ele, mas eu estava viva. E ele estava certo, eu fui burra de ter tentado mudar uma coisa que não estava nem um pouco ao meu alcance. Então somente andei em direção a porta, para ter a pior noite de sono da minha vida.
Mas antes que eu não pudesse mais falar com aquela figura outra vez, me virei. Me virei e menti.
– Você é exatamente do jeito que eu imaginava – eu estava sorrindo.
Era pra soar como um elogio.
– Isso é porque você não tem imaginação o suficiente.
Parei de sorrir. Pensei em dizer “te vejo no fim” numa brincadeirinha, mas dizem que não é bom brincar com a Morte. Simplesmente me virei de novo, e puxei o ar para meus pulmões, com a maior força que pude. Fiquei feliz só por sentir o ar entrando em meus pulmões.
Assim que passei a porta do bar, vomitei. Coloquei tudo pra fora, não sei se foi pelas bebidas ou simplesmente pela pressão de tudo que aconteceu naquelas horas. Talvez fosse só para cuspir uma bala no meu estômago. Penteei minha franja para trás com as mãos, e assim ela ficou, um topete feito com suor. Soa divertido para quarta de madrugada nas ruas.
Andei, andei, andei. Aproveitando cada momento, eu nem estava mais brava com o calor. Na verdade, o tempo parecia ótimo. Ah, ainda não acabou.
– Megan!
Quando estava chorando em casa, imaginei que nunca mais ouviria essa voz. Pensei nisso por horas e horas, até decidir beber para não me lembrar de nada. O que não aconteceu. Eu tive um calafrio quando ouvi aquele cara chamando o meu nome. Pisquei uma vez. E depois parei, para me virar. E me virei.
– Megan! O que você está fazendo nas ruas agora? é uma merda ouvir a voz do cara que você passa a vida, e do nada algum dia só diz não te querer ou te amar, entre outras coisas.
– Ah, eu estava tomando um ar, só isso... – sinto meu coração acelerar.
É claro que eu nunca diria tudo, muito menos com detalhes.
– Eu não parei de pensar em você... E eu queria pedir desculpas por anteontem... Você sabe que eu te amo, e que vai ficar tudo bem, e eu disse besteiras...
Senti meus batimentos diminuindo, pouco a pouco, enquanto eu olhava para frente e começava a querer vomitar, dessa vez, por nojo. Há duas horas eu teria simplesmente o abraçado, mas depois... Não senti mais nada. Me senti fria, e completa, e sozinha. E então fiquei séria.

– Meg, o que foi? – ele deu uma pausa para, sem sucesso, esperar minha resposta. – Quer dormir lá em casa? Eu faço um milkshake para nós e...
– Cala a boca. E vá se foder, Lou. Quando matei por você não sabia o que era a morte, não quero isso tudo, de novo. Eu acabei de conhecê-la. – agora corrijo, conhecê-lo. Um homem de terno branco.
Não menti. Pela primeira vez na vida tinha sido sincera, realmente sincera. Ele estava perplexo, e ainda era possível de ver em seu rosto tudo o que pensava. Simplesmente me virei e comecei a andar de volta para minha casa, apreciando cada momento. Pude ouvir soluços. Me senti ainda melhor. Vingança realmente é um prato que se come frio, mas não esse. Gostaria de ter agradecido, por tudo que aconteceu, por tudo o que me tornei. Não é todo dia que eu levo um tiro no estômago e fico feliz por estar viva.
Obrigada.

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